O ser humano sempre se deparou com o grande conflito entre o bem e o mal. Em todas as culturas vemos sempre esse misterioso dualismo. Em diversas religiões há disputas travadas entre um deus bom e um deus ruim. Freud diz que o homem está sempre sujeito a consciências internas voltas para o Eros (amor, bondade etc.) ou para o Thanos (morte, destruição), demonstrando que esse dualismo é algo natural do homem. Alguns entendem que o objetivo do homem prudente é saber distinguir o que é bom daquilo que é ruim.
Homens brilhantes se ocuparam em estudar com profundidade os caminhos da moral e da ética. David Hume foi um desse homens. Nos estudos acerca da moral, Hume disserta acerca da justiça e sua origem e utilidade. Por meio de estudos metódicos e coerentes, o filósofo nos apresenta uma nova forma de pensar o direito.
A vida de David Hume
David Hume nasceu em 7 de maio de 1711 em Edimburgo, na Escócia, e faleceu em 25 de agosto de 1776. Era neto de sir David Faconer, presidente do Supremo Tribunal da Escócia. Inicialmente Hume pretendia seguir as carreiras jurídicas (mais por influência do avô), contudo, preferiu estudar filosofia e aprendizagem em geral.
Dedicou-se aos estudos, como autodidata, na França, onde completou a sua obra-prima, Tratado da Natureza Humana, com apenas 26 anos.
Escreveu também, em 1748, Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano, que posteriormente teve o título alterado para Investigação sobre o Entendimento Humano. A leitura deste livro teria feito Immanuel Kant - então um desconhecido professor universitário em Königsberg, já de idade avançada e sem qualquer obra relevante - afirmar que o fez acordar do seu "sono dogmático".
De 1763 a 1765 Hume atua como secretário da Embaixada da Escócia em Paris. Em 1766 ele hospeda Jean-Jacques Rousseau, na Inglaterra, indispondose com ele em seguida. Em 1768, foi nomeado secretário de Estado em Londres. Nesse meio tempo, publicou Investigação sobre os Princípios Morais (1751), História da Inglaterra (1754-1759) e História Natural da Religião (1757). Somente após sua morte (1776) é que foram publicados, em 1779, seus Diálogos sobre a Religião Natural.
Com teses contrárias à ordem vigente, Hume foi acusado de "ateísmo" e "heresia", o que lhe valeu uma negativa quando se candidatou à cadeira de Ética na Universidade de Edimburgo. E, ainda, em 1761 todas as suas obras foram colocadas no Index dos livros proibidos. Em 1776, ano de sua morte, Hume redige A vida de David Hume escrita por ele mesmo.
A moral como experiência humana
Segundo o pensamento de Hume, o homem possui impressões (percepção imediata da realidade exterior) e idéias (lembrança de tal impressão). A impressão é a causa direta da idéia guardada na mente. Se você queima a mão no fogão, o que você experimenta é uma impressão imediata. Mais tarde pode ser que você se lembre de que se queimou, e esta lembrança Hume chama de idéia, noção. "A mente é um papel em branco em que são escritas as impressões proporcionadas pela experiência."
"A mente é um papel em branco em que são escritas as impressões proporcionadas pela experiência."
Os princípios da moral não têm fundamento na razão, mas no sentimento. Nesse sentido, não é a razão que informa o que seja o certo e o errado, o justo ou o injusto, mas a própria experiência humana Não existe uma faculdade especial como uma razão moral, nem tampouco um bem supremo ao qual deva se conformar o comportamento humano.
A moralidade é apenas um conjunto de qualidades aprovadas pela generalidade das pessoas. Essas qualidades seriam aprovadas conforme sua utilidade ou o prazer que proporcionam.
Utilidade é a aptidão ou a tendência natural para servir a um fim, desde que este seja visto como bom. David Hume entende que tudo o que produz incomodidade nas ações humanas se chama vício, e o que produz satisfação se chama virtude. Assim, a finalidade da especulação moral é fazer-nos evitar o vício e abraçar a virtude. Hume concede à Justiça o status de virtude social, juntamente com a benevolência.
A justiça e a utilidade pública
A justiça (respeito pelo direito de propriedade) deveria todo o seu mérito à utilidade pública, pois conduz ao bem-estar da sociedade. A justiça não teria qualquer necessidade lógica interna e seria desnecessária, se a bondade do homem fosse suficientemente grande para fazer com que todos se sentissem bem, sem necessidade de roubo.
No livro Uma Investigação sobre os princípios da moral, Hume afirma que "A utilidade pública é o objetivo geral de todas as correntes de justiça, e essa utilidade requer igualmente uma regra estável em todas as controvérsias, mas quando diversas regras quase iguais ou indistintas se apresentam, basta uma mínima inclinação do pensamento para estabelecer a decisão em favor deste ou daquele litigante."
Hume também afirma no capítulo "Da origem do governo" no livro Ensaios morais, políticos e literários que o homem é levado a instituir a sociedade política, a fim de tornar possível a administração da justiça, sem a qual não pode haver entre os homens nem paz, nem segurança, nem relações mútuas. Aqui, Hume entende que a Justiça é essencial a qualquer sociedade organizada.
Nesse sentido, afirma que "Em última análise, a distribuição da justiça deve ser considerada como único objetivo e finalidade de todo o vasto mecanismo de nosso governo". Hume defende a existência da noção humana daquilo que seja justiça "Todo homem tem consciência da necessidade da justiça para conservar a paz e a ordem, assim como todo homem tem consciência da necessidade da paz e da ordem para a conservação da sociedade". Assim, a justiça nasce à medida que a fragilidade humana é incurável. Daí resulta a necessidade de se criarem cargos de magistraturas para impor a justiça.
"A utilidade pública é o objetivo geral de todas as correntes de justiça (...)."
O pensamento de Hume se resume na ideia de que um governo só é legítimo se for útil. Assim, contraria a tese do direito divino dos reis, do contrato social e do uso do despotismo e da violência como recursos para a manutenção da ordem social. Segundo o filósofo, a legitimidade do governo por meio do princípio da utilidade é resolvida de maneira racional.
Autoridade versus Liberdade
O filósofo escocês entende que para que a justiça seja bem administrada deve haver a obediência. Caso contrário, a justiça não seria útil. "A obediência é um novo dever, que precisa ser inventado para sustentar a justiça, e os laços da equidade devem ser reforçados pelos da sujeição." Assim, se formula a tese do binômio autoridade e liberdade.
Segundo Hume, nos diversos governos há uma luta entre dois ideais: o da autoridade e o da liberdade - que Marx futuramente daria o nome de luta de classes: "Em todos os governos existe uma permanente luta intestina, aberta ou silenciosa, entre a autoridade e a liberdade, e neste conflito nem uma nem outra pode jamais prevalecer de maneira absoluta.
Em todos os governos se tem necessariamente que fazer um grande sacrifício da liberdade, e contudo também a autoridade, que limita a liberdade, jamais deve, em qualquer constituição, tornar-se completa e incontrolável."
As regras da equidade ou da justiça dependem, portanto, inteiramente do estado e da situação particulares em que os homens se encontram e devem sua origem e existência à utilidade que proporcionam ao público pela sua observância estrita e regular. Assim, a autoridade se legitima à medida que proporciona o bem público e é útil à sociedade.
Projeção dos trabalhos de Hume
David Hume foi, juntamente com Adam Smith e Thomas Reid, entre outros, uma das figuras mais importantes do chamado iluminismo escocês. Hume trouxe novos rumos para a filosofia, entrando em desacordo com os racionalistas e fazendo parte dos grandes filósofos. A filosofia de Hume despertou Kant de seu "sono dogmático" e o fez criar a filosofia crítica, a partir da devastadora análise do conceito de causalidade. Influenciou também o positivismo de Augusto Comte e o utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill.
Fonte: Revista Visão Jurídica/